Pessoas queridas, neste último final de semana, Jason Zweig, colunista do The Wall Street Journal, publicou uma matéria comunicando ao grande público – de maneira extremamente lúcida e respeitosa – a decisão de Daniel Kahneman por encerrar a própria vida, fato desconhecido até então.
Sinto que os que contaram com o privilégio de serem impactados por ele puderam, mais uma vez, entrar em contato com sua perspicácia, franqueza e sagacidade, características tão marcantes em seu legado.
A matéria é um primor. Resolvemos compartilhá-la por aqui, traduzida, na esperança de que ela possa tocar mais pessoas. Era de se esperar que uma das maiores mentes do nosso tempo nos ensinasse até na hora da sua partida. Sorte nossa.
Link para a matéria original → https://www.wsj.com/arts-culture/books/daniel-kahneman-assisted-suicide-9fb16124.
Em meados de março de 2024, Daniel Kahneman voou de Nova York para Paris com sua parceira, Barbara Tversky, para se reunir com sua filha e sua família. Eles passaram dias passeando pela cidade, visitando museus, apresentações de balé, saboreando soufflés e mousses de chocolate. Por volta de 22 de março, Kahneman, que havia completado 90 anos naquele mês, começou a enviar uma mensagem para várias dezenas de pessoas com quem tinha mais proximidade.
Em 26 de março, Kahneman se despediu de sua família e voou para a Suíça. Seu e-mail explicou o motivo:
“Esta é uma carta de despedida que estou enviando aos amigos para dizer que estou a caminho da Suíça, onde minha vida terminará no dia 27 de março.”
Kahneman foi um dos pensadores mais influentes do mundo – psicólogo da Universidade de Princeton, vencedor do Prêmio Nobel de Economia e autor do best-seller internacional “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”, publicado pela primeira vez em 2011. Ele havia passado sua longa carreira estudando as imperfeições e inconsistências nas tomadas de decisões por seres humanos. Segundo a maioria das pessoas – embora não segundo ele mesmo – Kahneman ainda estava em razoavelmente boa saúde física e mental quando escolheu morrer.
Sua morte foi amplamente lamentada quase um ano atrás. No entanto, apenas amigos próximos e familiares sabiam que ela aconteceu em uma instalação de suicídio assistido na Suíça. Alguns ainda têm dificuldade em aceitar sua decisão.
É o meu caso. Conheci Kahneman por quase três décadas e passei dois anos entusiasmantes e exasperantes ajudando-o a pesquisar, escrever e editar “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”. Em 2008, tivemos um “divórcio literário”, já que o Danny sentiu que precisava seguir seu próprio caminho para terminar o livro – e eu fui para o Wall Street Journal.
Nosso término foi amigável, no entanto; nos anos seguintes, eu o entrevistei em eventos públicos e regularmente para minhas colunas de investimentos no jornal. Mantivemos contato periódico por e-mail e telefone. Eu não recebi seu e-mail final, embora várias pessoas o tenham compartilhado comigo no último ano.
Para mim, a morte de Danny desperta todos os tipos de sentimentos. Quando eu estava na faculdade, meu pai tirou a própria vida com uma overdose de pílulas para dormir. Mas meu pai, quem eu venerava, estava em uma dor excruciante; o câncer de pulmão dele havia se espalhado para os ossos e, depois de várias cirurgias, ele se recusou a deixar os médicos continuarem a operá-lo sem esperança de cura.
Minha mãe, meu irmão e eu seguramos suas mãos e dissemos que o amávamos. Em algum momento da nossa vigília noturna, adormeci sentado na cama dele; quando acordei, meu pai havia partido.
Mas eu nunca pude me despedir de Danny e não entendo totalmente por que ele sentiu que precisava ir embora. Sua morte levanta questões profundas: como o maior especialista do mundo em tomada de decisões tomou a decisão final? O quanto ele seguiu seus próprios preceitos sobre como fazer boas escolhas? Como sua decisão se encaixa no crescente debate sobre os pontos negativos da longevidade extrema? Quanto controle nós temos, e deveríamos ter, sobre nossa própria morte?
Antes das pesquisas inovadoras que Kahneman conduziu, muitas delas com o falecido marido de Barbara Tversky, Amos Tversky, os economistas há muito tempo partiam da premissa de que os seres humanos eram racionais. Com isso, eles queriam dizer que as crenças das pessoas são internamente consistentes, que elas tomam decisões com base em todas as informações relevantes e que suas preferências não mudam.
Em uma série de experimentos simples e brilhantes, Kahneman e Tversky refutaram essa definição de racionalidade. Mas Kahneman nunca afirmou que as pessoas são irracionais. Em vez disso, ele argumentou que elas são inconsistentes, emocionais e facilmente enganadas – mais facilmente ainda, por elas mesmas. “A auto enganação ajuda a sustentar a maioria das pessoas”, ele me disse, anos atrás. Em resumo, ele argumentava que as pessoas não são nem racionais nem irracionais; elas são, simplesmente, humanas.
Kahneman costumava dizer que décadas de estudo da mente humana o haviam ensinado a como reconhecer – mas não a evitar – as armadilhas da tomada de decisões.
Acho que Danny queria, acima de tudo, evitar um longo declínio, partir nos seus próprios termos, ter controle sobre sua própria morte. Talvez os princípios da boa tomada de decisão que ele tanto defendia – confiar em dados, não confiar na intuição na maioria dos casos, ver as evidências da perspectiva mais ampla possível – tivessem pouco a ver com sua decisão.
Seus amigos e familiares dizem que a escolha de Kahneman foi puramente pessoal; ele não endossava o suicídio assistido para mais ninguém e nunca desejou ser visto como alguém que o recomendaria aos outros.
Alguns amigos de Kahneman acham que o que ele fez foi consistente com sua própria pesquisa. “Até o fim, ele era muito mais inteligente do que a maioria de nós”, diz Philip Tetlock, psicólogo da Universidade da Pensilvânia. “Mas eu não sou um leitor de mentes. Meu melhor palpite é que ele sentiu que estava caindo aos pedaços, cognitiva e fisicamente. E ele realmente queria aproveitar a vida e esperava que a vida se tornasse progressivamente menos agradável. Suspeito que ele tenha feito uma espécie de cálculo hedônico de quando os fardos da vida começariam a superar os benefícios – e provavelmente previu um grande declínio a partir dos seus 90 e poucos anos.”
Tetlock acrescenta: “Eu nunca vi uma morte tão bem planejada quanto a que Danny desenhou.”
A esposa de Kahneman, Anne Treisman, morreu de um derrame em 2018 depois de vários anos sofrendo de demência vascular. A doença dela foi profundamente dolorosa para Kahneman; como ele me escreveu em julho de 2015, “Estou muito preocupado com a saúde de Anne e não estou funcionando bem no geral.” Ele me convidou para o memorial dela no apartamento deles em fevereiro de 2018, embora eu não tenha conseguido comparecer. Anos antes, sua mãe também havia morrido após um declínio cognitivo.
Em meus arquivos, tenho o primeiro rascunho de um capítulo que Kahneman esboçou no início de 2008 para “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”. Ele escreveu: “Durante sua última doença, minha mãe perdeu seu ‘eu’ que se lembrava das coisas... ela não poderia te contar muito sobre sua estadia atual no hospital porque lembrava tão pouco dela. Eu descobri com desgosto que eu sabia muito mais sobre o que ela passou do que ela mesma.”

Kahneman não queria que isso acontecesse com ele. Ele continua, em seu e-mail final, indicando que ele sentia que logo isso aconteceria:
“Eu sempre acreditei, desde adolescente, que as misérias e indignidades dos últimos anos de vida são desnecessárias, e estou agindo com base nessa crença.”
Ainda assim, um dos princípios que ele mais prezava era a importância de reconsiderar. “A maioria das pessoas odeia mudar de opinião”, ele dizia, “mas eu gosto de mudar de ideia. Isso significa que aprendi algo.”
Como escrevi em uma coluna sobre Kahneman no ano passado: “Uma vez mostrei a ele uma carta que recebi de um leitor me dizendo – corretamente, mas de forma rude – que eu estava errado sobre algo. ‘Você tem ideia de como é sortudo ter milhares de pessoas que podem te dizer que você está errado?’ Danny disse.”
Kahneman contou a alguns dos mais próximos sobre seus planos semanas antes de voar para a Suíça. Apesar das tentativas deles de convencê-lo a adiar a decisão, ele não cedeu. Um amigo implorou tanto para que ele mudasse de ideia que Kahneman finalmente lhe disse para parar. Relutantemente, o amigo desistiu da tentativa de fazer Kahneman mudar de opinião.
“Eu não tenho custos irrecuperáveis”, Kahneman adorava dizer. Ele sempre queria que as evidências, e não a quantidade de esforço ou compromisso empregados anteriormente, determinassem suas crenças e ações. Mas, de alguma forma, ele não conseguiu se desvencilhar de uma visão que formou décadas antes.
A vida era certamente preciosa para ele. Kahneman e sua família judaica passaram grande parte de sua infância se escondendo dos nazistas no sul da França durante o Holocausto. “Fomos caçados como coelhos”, ele disse.
“Eu ainda sou ativo, aproveitando muitas coisas da vida (exceto as notícias diárias) e morrerei um homem feliz. Mas meus rins estão à beira do colapso, a frequência das falhas mentais está aumentando e eu tenho noventa anos. É hora de ir.”
Kahneman havia completado 90 anos no dia 5 de março de 2024. Mas ele não estava em diálise, e aqueles próximos a ele não viam sinais de declínio cognitivo ou depressão significativos. Ele estava trabalhando em vários artigos de pesquisa na semana em que morreu.

Como Barbara Tversky, que é professora emérita de psicologia na Universidade de Stanford, escreveu em um ensaio online logo após sua morte, seus últimos dias em Paris haviam sido mágicos. Eles haviam “caminhado e caminhado e caminhado em um clima idílico... riram, choraram e jantaram com família e amigos.” Kahneman “levou sua família até sua casa de infância em Neuilly-sur-Seine e seu parquinho infantil do outro lado do rio em... Bois de Boulogne”, ela se lembrou. “Ele escrevia pela manhã; as tardes e noites eram para nós em Paris.”
Uma tarde, de acordo com seu ensaio online, ela perguntou o que ele gostaria de fazer. “Eu quero aprender algo”, ele disse.
Kahneman sabia da importância psicológica dos finais felizes. Em experimentos repetidos, ele demonstrou o que chamou de “regra do pico e término”: Se lembramos de uma experiência como prazerosa ou dolorosa não depende de por quanto tempo ela foi boa ou ruim, mas sim da intensidade do pico e do final dessas emoções.
“Foi um choque para os amigos e familiares de Danny que ele parecia estar aproveitando tanto a vida no final”, diz um amigo. “‘Por que parar agora?’ imploramos a ele. E embora eu ainda deseje que ele tivesse nos dado mais tempo, é o caso de que, ao seguir esse plano cuidadosamente pensado, Danny foi capaz de criar um final feliz para uma vida de 90 anos, de acordo com sua regra do pico e do final. Ele não teria conseguido isso se tivesse deixado a natureza seguir seu curso.”
Será que completar 90 anos teve um papel em sua decisão? As primeiras pesquisas de Kahneman e Tversky mostraram que, quando as pessoas estão incertas, elas estimam números por meio da “ancoragem”, ou seja, se agarrando a qualquer número que esteja disponível, independentemente de quão relevante ele seja para a decisão.
Outro dos princípios de Kahneman era a importância de tomar o que ele chamava de olhar externo: Em vez de tratar cada decisão como um caso especial, você deve considerá-la como parte de uma classe de situações semelhantes. Recolha dados de exemplos comparáveis dessa classe de referência e depois considere por que seu caso particular pode ter melhores ou piores perspectivas.
Uma possível abordagem: Kahneman poderia ter reunido dados para determinar se pessoas que vivem até os 95 anos ou mais tendem a se arrepender de não ter morrido aos 90 anos – ajustando para a dificuldade de obter relatos confiáveis de pacientes com demência e outras condições debilitantes. Talvez ele tenha feito algo assim; eu não sei.

Ele parece ter se concentrado intensamente em outra questão. Como o parágrafo seguinte de seu último e-mail dizia:
“Não surpreendentemente, alguns dos que me amam prefeririam que eu esperasse até que fosse óbvio que minha vida não vale a pena ser estendida. Mas tomei minha decisão justamente porque queria evitar esse estado, então tinha que parecer prematuro. Sou grato aos poucos com quem compartilhei isso antecipadamente, todos os quais, relutantemente, terminaram se dispondo a me apoiar.”
A amiga de Kahneman, Annie Duke, teórica das decisões e ex-jogadora profissional de pôquer, publicou um livro em 2022 chamado “Quit: The Power of Knowing When to Walk Away” (Desistir: é Libertador Saber Quando se Afastar). Nele, ela escreveu: “Desistir na hora certa geralmente vai parecer desistir cedo demais.”
Ela está frustrada com a decisão dele. “Há uma grande diferença entre parecer cedo e realmente ser cedo demais”, diz ela. “Você não está terminal, você está bem. Por que não está aceitando o olhar externo? Por que não está ouvindo pessoas que vão te dar bons conselhos objetivos? Por que está fazendo isso?”
Paul Slovic, psicólogo da Universidade de Oregon, amigo de Kahneman há mais de 50 anos, diz: “Danny era o tipo de pessoa que pensava longamente sobre as coisas, então eu imaginei que ele deve ter pensado sobre isso muito lentamente e deliberadamente. Claro, aqueles de nós que passam a vida estudando decisões, pensamos muito sobre as razões para essas decisões. Mas, muitas vezes, as razões não são razões. São sentimentos.”
Em seu último e-mail, Kahneman continuou:
“Não estou envergonhado pela minha escolha, mas também não estou interessado em transformá-la em uma declaração pública. A família evitará detalhes sobre a causa da morte tanto quanto possível, porque ninguém quer que seja o foco nos obituários. Por favor, evitem falar sobre isso por alguns dias.”
Embora o suicídio assistido continue ilegal na maioria dos países, está em ascensão. O suicídio assistido é legal na Suíça se o paciente estiver com a mente sã, tiver pelo menos 18 anos e as motivações daqueles que assistem não forem egoístas. O paciente deve auto-administrar a dose letal.
É um tópico intensamente emocional. Uma pesquisa recente da Gallup perguntou se deveria ser legal para médicos ajudarem pacientes terminais com dor intensa a cometer suicídio; 66% dos americanos disseram sim. Por outro lado, em uma pesquisa separada da Gallup, 40% dos participantes disseram que o suicídio assistido por médicos é “moralmente errado.”
Além do potencial para abusos, acho que a razão para a ambivalência é óbvia. Se você terminar sua vida prematuramente, antes de estar com dor aguda ou declínio mental, você se protege e protege aqueles que ama do sofrimento iminente. Mas também expõe seus entes queridos à dor de sua ausência e ao pesar de nunca entender completamente sua escolha e de não terem sido escutados.
Como continuou o último e-mail de Danny:
“Descobri, depois de tomar a decisão, que não tenho medo de não existir, e que vejo a morte como dormir e não acordar. O último período não foi verdadeiramente difícil, exceto por testemunhar a dor que causei aos outros. Então, se você estiver inclinado a sentir pena de mim, não sinta.”
À medida que a morte se aproxima, devemos aproveitar ao máximo o tempo que temos com aqueles que mais amamos? Ou devemos poupá-los, e a nós mesmos, o máximo possível, de nosso inevitável declínio? Cabe somente a nós mesmos o direito sobre nossa morte?
Danny me ensinou a importância de dizer “eu não sei.” E eu não sei as respostas para essas perguntas. Eu sei, sim, que as últimas palavras do seu último e-mail parecem certas, mas de alguma forma ainda soam erradas:
“Obrigado por ajudar a fazer da minha vida uma boa vida.”
A pedido da escola, a tradução da matéria foi generosamente oferecida por Victor Castelo, planejador financeiro, aluno da nossa turma de 2025.
Reforçamos o convite para a matéria original: https://www.wsj.com/arts-culture/books/daniel-kahneman-assisted-suicide-9fb16124.
Que o legado do Kahneman possa espalhar benefícios em todas as direções.
Seguimos.
Achei que esse parágrafo resumiu bem:
Claro, aqueles de nós que passam a vida estudando decisões, pensamos muito sobre as razões para essas decisões. Mas, muitas vezes, as razões não são razões. São sentimentos.” 💛
De alguma maneira também me ocorre pensamentos como o dele. Porque não abreviar a vida antes que ela se torne insuportável? Decisão difícil mas, antes de tudo, corajosa. Ele deve ter feito muita gente feliz, deixou um legado inquestionável e deixará na memória dos mais próximos e de cada um dos seus leitores a sua coerência. Siga em paz.